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Uma oportunidade para adultos e crianças viverem o cotidiano de modo criativo

Para boa parte das crianças nascidas neste século XXI, a experiência do convívio familiar (entendendo esse adjetivo como caracterizador das pessoas que habitam a mesma casa) de modo tão próximo e, principalmente, por tanto tempo talvez seja uma experiência nova. As crianças deste século, habitantes de meios urbanos, como Porto Alegre e outras cidades do interior com porte populacional e de desenvolvimento semelhante, têm um cotidiano que restringe a ocupação de espaços e tempos. Essas restrições podem envolver os espaços ao ar livre e o escasso tempo de convívio familiar em função das atribuições profissionais dos responsáveis, por exemplo. 

Poderíamos dizer, então, que há espaços de brincar e de ser criança reduzidos: das casas pequenas aos apartamentos com pouco espaço; das agendas repletas de atividades da escola às múltiplas atividades que as complementam. Tais restrições, na verdade, levam a ocupações, pelas crianças, de espaços e tempos de outras formas – e a escola é um desses “espaço-tempos” que ocupa muito da infância contemporânea.

Como está sem aulas, Pedro, filho de Fernando Becker e Ana Anés, participa das
atividades do dia a dia em casa, além de fazer atividades enviadas pela escola (Fotos: Arquivo pessoal)

Ao mesmo tempo que tudo isso pretende ampliar possibilidades – abrindo espaço para outras experiências, a maioria mediada pelas novas tecnologias –, acaba por restringir algumas experiências, tornando a infância de agora diferente daquela que muitos de nós, adultos, vivemos.

Os tempos de COVID-19 que chegaram sem prévio aviso, com pouca preparação (em muitos sentidos), têm provocado o (re)pensar dos espaços e dos tempos do convívio familiar, envolvendo adultos e crianças em um novo cotidiano. Este texto pretende fazer algumas reflexões em torno dessa questão.

Como (re)ocupar espaços e viver tempos de convívio entre as crianças e os adultos de sua família de maneira que se recuperem ou se ampliem experiências criativas? Nossas reflexões estão assentadas na concepção de que o convívio e as experiências decorrentes desse “viver com” podem ser mediadoras da criatividade e da imaginação. Tornar o cotidiano doméstico um espaço e um tempo de experiências lúdicas pode ser motivador à criação.

O psicólogo do desenvolvimento infantil Lev Semionovich Vigotski aborda a ideia de atividade criadora. Essa capacidade cerebral de criar, segundo Vigotski, pode ser entendida como a capacidade de reproduzir algo já vivido (por exemplo, as lembranças que temos de um lugar, de um momento) ou a capacidade de, a partir do já vivido, criar algo por meio de modificações e de reelaborações, promovendo novas combinações que nos levam a uma criação totalmente nova.

Entendemos que a interação familiar possibilitada por estes dias em casa pode ser mediadora de exercícios de criatividade, inventando-se novos modos de habitar a casa, de ser família, de ser adulto e de ser criança. Não ignoramos as mudanças que o século XXI trouxe para a vida das crianças nem pretendemos um movimento de retrocesso ao passado como se o que antes acontecia fosse mais potente, mais genuinamente infantil ou mais verdadeiro. O que apontamos são caminhos criativos, como Vigotski entende criatividade, ou seja, caminhos que buscam novas combinações, considerando-se o que já está no cotidiano e o que podemos reelaborar a partir disso.

No bairro Petrópolis, no final da tarde, tornou-se habitual ver famílias caminhando, separadamente, pelas ruas. Exercícios físicos são uma das variações de atividades utilizadas nesse período de convívio mais prolongado imposto pelo distanciamento social (Foto: Flávio Dutra/JU)

Nessa ótica de ocupar espaços e tempos com atividades criativas, sugerimos algumas experiências bem práticas, que podem se constituir em momentos de criar um novo tempo e um novo espaço de interação, envolvendo o cotidiano na ampliação do conhecimento de mundo e com o mundo. Cabe ressaltar que não pretendemos indicar atividades ou propostas que, de maneira alguma, venham substituir os aprendizados realizados nas instituições escolares. Nossa única intenção é apresentar possibilidades de ocupar o espaço e o tempo em família, potencializando a criatividade, a imaginação e, principalmente, experiências humanizadoras e sensíveis à vida e ao seu cotidiano.

Assim, elencamos algumas experiências que podem ser vividas em casa com as crianças:

  • participar de situações cotidianas da casa de maneira que sejam ao mesmo tempo parte da rotina e momentos de convívio lúdico, tais como: lavar e estender roupas, separando-as (cor, tamanho, tipo); auxiliar no preparo da comida, encontrando os ingredientes, misturando e percebendo as mudanças de textura, de cor, de sabor; auxiliar na organização de brinquedos, da despensa de alimentos, do guarda-roupa, dos armários, etc.
  • criar com objetos do cotidiano (caixas, embalagens, potes, etc.), estimulando o “faz de conta”;
  • partilhar leituras: livros de literatura (existem muitos disponíveis online, além dos livros físicos, é claro), poemas, pequenas histórias;
  • ler e escrever em situações cotidianas: a lista de compras, uma receita (e fazer a receita), ler as instruções de um jogo ou brinquedo (e depois jogar e brincar);
  • criar um diário do isolamento: registrar (por meio de desenhos, palavras, imagens) as vivências, sentimentos, fatos e eventos do período em que se está em casa;
  • rememorar histórias de família, a partir de álbuns de fotografias (que podem ser construídos virtual ou fisicamente com autoria da família); e
  • principalmente, brincar e jogar como se jogava na infância dos adultos, experimentando jogos e brincadeiras de antigamente (“esconde objeto”, “stop”, jogo da velha, etc.).

Essa lista apresenta sugestões que não têm a pretensão de ser vinculadas a conteúdos ou experiências escolares. Todas são experiências a serem partilhadas pelos adultos junto com as crianças, atentando para que elas não sejam apenas conduzidas, mas também sejam condutoras das ações.

A ideia principal é aproximar a criança do mundo e das coisas do mundo que fazem parte da rotina familiar, engajá-la nesse dia a dia, fazendo-a participar dele na medida de suas possibilidades e interesses.

Entendemos que essas experiências (e muitas outras) podem ser potencializadoras da criatividade e da imaginação infantil, além de fortalecerem laços familiares e relações humanas.

fonte: www.ufrgs.br

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Perguntas de criança: o que responder?

Numa cena cotidiana a filha pergunta à mãe o que é virgem. A mãe toma fôlego e, com uma explicação enorme, rebuscada e completamente sem nexo para aquilo que a menina lia na garrafa do azeite, responde de imediato e tudo à pergunta que ela escutou, mas que a criança não fez.

Se de um lado a resposta instantânea aponta para a prontidão e sugere a presença viva do adulto, de outro, ela fecha a possibilidade inaugurada pela criança de um diálogo, um encontro que permite a co-construção de um saber, e não o entupimento da criança com o saber do adulto. Do mesmo modo, tudo, pode sugerir a ideia de uma resposta completa, ao mesmo tempo em que não deixa brecha para o vazio, a falta, o surgimento da dúvida, da diferença e, o que é mais importante, do outro – no caso, a criança. Por mais que a menina lançasse novas perguntas, elas eram rapidamente incluídas no monólogo materno, deixando-a como mera expectadora do discurso da mãe.

Lembremos o enunciado do vídeo original no canal da Future ShortsSometimes little questions need big answers. Em livre tradução isto quer dizer: às vezes pequenas questões precisam de grandes respostas. Grandes, como sinônimo de grandiosas, claras; não longas ou excessivas. Respostas objetivas, e por vezes diretas, assim como são colocadas as perguntas na primeira infância – e não arbitrárias, como costumam ser as respostas dos adultos quando atravessadas quase que exclusivamente por suas próprias questões, conscientes ou não.

A criança quer ou precisa de resposta apenas para aquilo que ela pergunta. Não falar tudo não é omitir ou mentir. É falar o que a criança almeja saber, entender, confirmar, se assegurar e, sobretudo, aquilo que ela é capaz de apreender.

Se a criança pergunta para confirmar algo que ela já sabe ou foi informada, podemos devolver-lhe a pergunta. Se ela quer saber alguma coisa nova, um caminho é responder de maneira simples e sem rodeios, não introduzindo muitos elementos além daquilo que ela perguntou. Quando a resposta é insatisfatória ou provoca novas questões, a própria criança interroga o que foi dito com novas perguntas. Basta ter ouvidos para ouvi-las!

Seja qual for a situação, devemos levar em conta de onde a criança parte e o que ela já sabe sobre o que pergunta. Lançar um “onde você viu isso” ou algo similar ajuda a balizar qual caminho escolher para a resposta. Isso é escutar. Isso é o que permite o adulto acolher, confirmar, ponderar e ajudar a criança a construir e reconstruir cada uma de suas hipóteses, para que criança possa ir conhecendo e entendendo o mundo como ele é.

Ao escutar a criança não é apenas a criança que aprende (sobre o que o adulto tem a dizer). O adulto aprende sobre quem é essa criança. O ganho é bilateral, como esperamos que seja nas relações humanas.

fonte: ninguemcrescesozinho.com.br

Imagem: Google

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Bullying: intolerância às diferenças

Recentemente ouvi de uma mãe que a escola onde seu filho estuda chamou-a porque o menino vinha praticando bullying contra um colega. Na sua fala existia um gozo pela valentia, coragem e liderança do filho, num tom que parecia ser bacana o que o menino fazia.

Até esta situação ocorrer, esta mãe, que para defender suas crenças se valia de argumentos que convencem o mundo de que ela está certa e quem está do lado oposto ao dela, errado, não havia percebido que no seu radicalismo entre o correto e o incorreto, o necessário e o supérfluo, o útil e o inútil, seu filho estava aprendendo que a vida é feita de extremos. Entre, aqui, não significava meio termo, mas a impossibilidade de diálogo entre os opostos.

Divergências existem, são esperadas, saudáveis e construtivas. No entanto, se o mundo é mostrado rigidamente apenas em uma das pontas – bonito ou feio, forte ou fraco, saudável ou doente, magro ou gordo, rico ou pobre, esperto ou tolo, entre outros – sem trânsito entre os extremos, elas se chocam, entram em atrito, sem a possibilidade de dialogar.

bullying – de bully, do inglês, mandão, tirânico – caracteriza-se por atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, por um ou mais indivíduo contra também um ou mais indivíduo. Apesar desta terminologia ser relativamente recente, as situações de violência pela intolerância às diferenças individuais e grupais sempre existiram. Freud, em sua obra O mal-estar na civilização (1930), denominou de narcisismo das pequenas diferenças a segregação hostil daquilo que não é possível suportar, olhar, reconhecer. Uma forma, segundo ele, de preservar a coesão dos grupos, mas também, podemos acrescentar, de preservar a rigidez de cada um de nós.

Nas situações de violência, agressor e agredido são, aparentemente, antagônicos – o mal e o coitado. Porém, em ambos os lados reside uma postura engessada decorrente da dificuldade no trato com as diferenças: uma sob a forma de ataque e a outra de paralisia. É por isto que tanto quem pratica quanto quem sofre o bullying são vítimas; vítimas de uma cultura que sustenta e valoriza a massificação, a falta de singularidade. Assim, “esquece-se” que mesmo que se tenham os mesmos pais, vistam a mesma roupa, tenham o mesmo carro, estudem na mesma escola, as pessoas são diferentes e as diferenças não podem ser tidas como defeito, inferioridade, nem como vantagem ou maior valia.

Um cego tem uma percepção tátil e auditiva que aqueles que têm o privilégio da visão nem sempre conseguem ter. Uma criança com Síndrome de Down em geral desenvolve uma afetuosidade que muitos não conseguem desenvolver. São inferiores? O cara cheio da grana, que pode comprar tudo, nem sempre é o mais feliz ou bem-sucedido em todas as áreas da vida. O que vence em todas as corridas, pode, por exemplo, fracassar nas relações amorosas. São superiores? Não, são todos diferentes uns dos outros, cada qual com suas características e potencialidades.

Todavia, enquanto vivermos avessos à pluralidade das coisas, valores, princípios, emoções, ideias, jeitos de ser, prevalecendo os pré-conceitos e o que eu quero e penso, não existirá o outro enquanto alteridade, sujeito desejante e pensante. Ou seja, não haverá saída para as situações conhecidas atualmente como bullying.

O “narigudo”, por exemplo, carrega uma herança biológica, mas também cultural. O “gordinho” pode assim ser porque mergulha nos prazeres gastronômicos. O menino mais sensível tem uma habilidade que pode ser um grande diferencial em relação aos “machões de carteirinha”. Então, por que não nos aventurarmos a conhecer este “outro” lado de cada um?

Desde muito cedo devemos educar a criança para as diferenças e, consequentemente, para o respeito a si e ao outro. Já é mais do que hora de encorajarmos as crianças (e a nós mesmos) a conviver com as diferenças. As crianças aprendem a partir do que observam e dos sentidos que são atribuídos às experiências vividas. Quem só anda de carro porque transporte público é para “os outros”, se coloca numa posição de superioridade. Quem não pode brincar com um amigo que é mal-educado, perde a chance de descobrir as demais qualidades daquela criança. Quem escuta sempre que é a criança mais linda do mundo, não conseguirá achar outra tão ou mais bonita do que ela.

Em qualquer desses gestos ou palavras, mesmo que despercebidos ou não intencionais, as crianças vão aprendendo que as diferenças não encontram espaço de expressão. Seu único caminho acaba sendo negá-las, pelo ataque ou pelo silêncio. É a sementinha para o bullying acontecer, seja como agressor ou agredido.

 

Nota: Este texto, publicado pela primeira vez em 27/11/2012 no antigo blog Ninguém Cresce Sozinho, foi revisado e alterado minimamente em seu conteúdo original pela autora.

fonte: ninguemcrescesozinho.com.br

Imagem: Google.

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Como ajudar as crianças em situações de mordidas?

Escrevi em outro texto sobre os sentidos e significados que podem ser atribuídos às mordidas, tapas e puxões de cabelo, dados e recebidos, pelas crianças pequenas. Aqui, escrevo sobre o papel do adulto nestas situações, bem como os manejos possíveis.

São pelo menos duas as posições dos adultos neste contexto: ou eles são os responsáveis pela criança que mordeu, ou são os responsáveis pela criança que recebeu a mordida. Os primeiros costumam se sentir constrangidos com a atitude da criança, além de preocupados em relação ao que este comportamento pode dizer dela, ao passo que, os segundos, tendem a ficar muito bravos e sentidos pelo ocorrido, muitas vezes demandando explicações e atitudes reparatórias. No meio deste cenário, qual o papel do adulto? Quais as intervenções que ele pode construir e a serviço do que elas se prestam?

Partindo da compreensão de que as mordidas, os tapas, puxões de cabelo e afins, são alguns dos recursos que a criança pequena tem ao longo de seu desenvolvimento para lidar com o excesso de excitação que algumas vivências lhes despertam, sejam em situações de vívida raiva ou extrema felicidade, o papel do adulto é justamente contribuir para ampliar seu repertório. Como? Construindo junto com ela outros destinos possíveis para tais sensações intensas que sejam mais favoráveis ao convívio social, por exemplo, a partir da fala oral, principal meio de expressão aceito em nossa cultura.

Assim, no percurso do desenvolvimento da linguagem infantil, o adulto tem a função essencial de traduzir, ao intermediar, nomear e interpretar os sentimentos, atitudes e explorações da criança, introduzindo, assim, novas referências para que ela se relacione com o mundo ao seu redor.

Durante situações de conflito, angústia, surpresa, felicidade, tristeza, raiva, medo, entre outros, é importante que o adulto esteja disponível para tentar perceber, sempre a partir da ótica da criança, o que está se passando com ela. Desse modo, é fundamental que ele possa emprestar à criança palavras que vão servir de contorno para suas sensações: “você ficou muito bravo e não gostou do que o fulano fez, por isso o mordeu”. Ou, “você ficou muito feliz ao ver o papai voltar de viagem, não sabia o que fazer com tanta felicidade e ‘nhac’, mordeu o papai”.

No entanto, esta é apenas a primeira etapa da função do adulto neste processo, afinal, não é porque a mordida ou um tapa são as formas que a criança tem de expressar seus sentimentos, que devem ser tolerados. O próximo passo é ajudar a criança a construir alternativas para lidar com eles de uma maneira mais efetiva, tanto do ponto de vista de sua capacidade de expressão, e consequente compreensão do outro, quanto em termos do que é legitimado pelo ambiente social no qual ela está inserida.

Neste sentido, falas como: “ você pode ficar bravo, ficar com raiva, falar bem sério com o amigo, pedir emprestado e esperar, mas não pode machucar o outro”, ou “você viu que machucou (e mostrar a marca), que doeu, que o amigo chorou, ficou chateado”, auxiliam a criança a nomear e reconhecer seus sentimentos bem como as consequências de suas atitudes na interação com o outro. Quando o adulto consegue interceptar uma situação de conflito antes que ela chegue a esse desfecho, ele pode inclusive pedir que as crianças digam essas falas olhando uma para a outra. E, por fim, uma boa estratégia de reparação, é convidar aquele que mordeu ou bateu para ajudar a cuidar daquele que foi mordido, passando pomada, fazendo uma massagem ou passando um lencinho umedecido desses prontos (que aliás, é uma ótima forma de aliviar a dor e prevenir que fique marcado e inchado!).

Ademais, é importante apontar que todas estas posturas do adulto são essenciais, inclusive para a criança que foi “atacada”. Essas falas também lhe servem de modelo e referência ainda que de outra perspectiva, uma vez que, diferente do amigo que mordeu ou bateu, ele tem em primeiro plano a necessidade de expressar a experiência da dor, do descontentamento, da chateação, do susto, ou até mesmo dos efeitos de seu próprio comportamento se a mordida veio em resposta à uma provocação que ele mesmo havia iniciado.

Desse modo, tanto para a família da criança que mordeu como para a família da criança que foi mordida é bom lembrar: o mordido de hoje pode ser o mordedor de amanhã! Mais saudável para a criança, independente da posição que ela esteja, ativa ou passiva, é poder oferecer recursos para que ela construa outras saídas diante das situações que as levam a morder.

Pensando que a escola visa justamente promover, entre outras competências, a sociabilidade da criança pequena, é comum que ela se torne o principal cenário para que as mordidas aconteçam. Assim, a troca entre a escola e a família se faz fundamental para que juntos possam conhecer e refletir sobre suas atitudes e seu contexto atual – até porque, muitas vezes o que aparece na escola não aparece em casa e vice-versa.

Lembro-me, do período em que trabalhava numa escola, do caso de uma garotinha que mesmo depois de ter compreendido que não era legal morder os amigos e de termos realizado várias intervenções, também junto à sua família, no sentido de oferecer-lhe alternativas quando se sentisse tomada pela raiva, acabou por encontrar uma saída que também não era satisfatória: ao invés de morder os outros, quando se percebia enfurecida por algum motivo, mordia sua própria mão. Assim, é relevante destacar que, quando determinados comportamentos persistem mesmo depois de um tempo considerável de tentativas de intervenções e reflexões conjunta, um trabalho mais profundo com a mediação de outros profissionais, como o psicólogo clínico, para avaliar a situação pode se justificar.

Outro aspecto interessante de apresentar no campo das mordidas, é que existe, em nossa cultura, uma situação na qual a mordida é aceitável: justo na relação entre adultos e bebês, quando os primeiros se deliciam ameaçando ou mesmo mordendo os segundos como uma espécie de brincadeira. Sendo esta uma prática comum na família da criança e, se até aqui falamos como a criança usa o adulto como parâmetro, então é provável que a mordida se apresente para essa criança como moeda afetiva. Se este for o caso, novamente aqui cabe ao adulto marcar a diferença para a criança além de lhe oferecer outras possibilidades de expressão e troca de afetos!

Por fim, vale ressaltar que a experiência de compreensão, por parte do adulto, acerca do que a criança está sentindo, se dá por tentativa e erro, como num jogo de “quente”ou “frio”: o adulto faz uma aposta e só depois poderá identificar seus efeitos na criança. Ou seja, isso significa que não existem discursos prontos, cada circunstância e, cada criança, demandará do adulto maneiras particulares de se relacionarem e serem ajudados em suas necessidades.

Imagem:Google.

Texto escrito por Silvia Bicudo.

A Silvia é psicóloga (PUC-SP), psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae) e acompanhante terapêutica em inclusão escolar. Com formação em Psicologia Perinatal e Parental (Instituto Gerar), fez parte da equipe da Ninguém Cresce Sozinho entre 2016 e 2018.

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Até que ponto castigo funciona?

Castigos e ameaças: será que valem à pena como medidas corretivas e educativas?

Uma questão que se apresenta com frequência quando pensamos no desenvolvimento e educação infantil diz respeito a como fazer com que a criança pequena se desenvolva dentro dos parâmetros familiares e sociais. Em outras palavras, como fazer para que uma criança cresça obedecendo às regras, combinados e códigos, sejam eles estipulados dentro do microcosmo familiar, como a sequência e os horários da rotina diária (banho, sonecaalimentação), sejam eles socialmente estabelecidos, como as condutas na escola que a criança frequenta, ou o fato de que não andamos pelados pelas ruas e nem usamos fralda a vida toda.

Nesse sentido, é importante destacarmos a existência de duas vertentes principais que se impõe para a criança no seu percurso de inserção no laço social: de um lado as demandas familiares e de outro as demandas sócio-culturais. Vale ressaltar que tais vertentes por vezes se aproximam, convergindo na mesma direção e, por vezes, se distanciam produzindo um movimento que acaba por compor um amplo repertório que facilita à criança a construção de sua própria concepção acerca das condutas a serem seguidas.

Todavia, não é incomum que essas vertentes se distanciem de maneira a não se intercruzarem em nenhum ponto, como quando a criança adentra o universo escolar. Nesta circunstância é possível que algumas diferenças relevantes apareçam: se em casa cada filho tem seu brinquedo evitando as disputas, na escola o brinquedo tem que ser dividido com todas as outras crianças; se em casa não se pode ficar sujo, na escola ficar sujo é inerente às atividades propostas, entre tantas outras situações.

Dessa forma, vemos que, quando se trata de educação e desenvolvimento, não basta seguir roteiros e teorias pré-determinadas, uma vez que é justo nas brechas das particularidades e naquilo que escapa da subjetividade de cada criança e de cada adulto por ela responsável, que as problemáticas se dão. Por isso, ao invés de propor scripts de como fazer, proponho algumas reflexões que possam servir de ponto de partida para pensarmos no caso a caso. Vamos lá?!

Para trabalhar essa temática é necessário resgatarmos como se dá a passagem de uma relação de completa dependência entre a criança e seus cuidadores, para uma relação que vise cada vez mais a autonomia da criança.

A criança pequena, que pôde constituir um “eu” minimamente estruturado, ao mesmo tempo em que é capaz de se perceber como um ser separado do outro, prescindindo de sua presença constante, ainda é fortemente atravessada pelas relações afetivas que com ele mantém. Sendo assim, ao sentir que desagradou um adulto importante, por exemplo, quando faz alguma traquinagem e leva uma bronca, a criança põe temporariamente em questão o afeto que ele sente por ela e, toda vez que após esse momento ela perceber que o adulto continua afetuoso, vai supor que reconquistou seu amor.

Essa lógica infantil (mas não apenas!) que denuncia a dependência afetiva da criança para com o adulto, em alguns momentos funciona a favor de seu desenvolvimento, como motor para algumas conquistas. O desfralde, neste contexto, pode ser bem ilustrativo: é porque a criança percebe a alegria de seus pais ou de seu professor quando ela faz cocô no penico que ela se vê incentivada a fazê-lo. Ou mesmo o contrário, se ela quer demonstrar algum descontentamento ou questão para com o adulto, uma vez que ela perceba que o cocô no penico é por ele esperado, é justo nessa situação que vai demonstrá-lo se recusando a fazer o que dela se espera. Ou seja, é pelo temor de perder o amor de quem ela ama que ela topa abrir mão de certos privilégios, como poder fazer suas necessidades onde e quando ela bem entender.

Porém, quando os adultos começam a fazer um uso dessa dependência como estratégia única de conseguir que a criança faça o que precisa ser feito, tanto para alcançar alguma necessidade básica, como para seguir os códigos e normas sociais, é que os desencontros costumam surgir.

É que nestes casos, o que entra em jogo é um uso ameaçador do afeto para solucionar determinados impasses. “Se você não tomar banho vai ficar sem seu brinquedo preferido”, “se você não comer a vovó vai ficar triste”e por aí vai. São saídas que até podem ter sua eficiência no sentido de fazer com que a criança execute o que está sendo pedido naquele momento pontual; afinal, em se tratando de questões alimentares, quem nunca viveu ou conhece alguém que viva a angústia de uma criança que não come?!

Por outro lado, uma vez que ela só o faz pelo temor da perda do amor do outro, tal estratégia não ajuda a criança na construção de uma consciência própria capaz de estabelecer parâmetros e ampliar seus recursos para lidar com as adversidades impostas pela vida. Ao contrário, tal estratégia promove a manutenção da dependência afetiva na medida em que as leis, códigos e regras, tão necessárias para a convivência social e coletividade, vêm de fora e têm como único critério o amor do outro. Além disso, nessas ameaças, a relação entre causa e consequência, tão cara à formação da consciência, é estabelecida de forma desconexa, “se sou eu quem não come, por que minha avó é quem fica triste”? E ainda, “qual a relação entre eu tomar banho e meu brinquedo favorito”?

Por isso é importante que possamos nos interrogar: qual é nosso objetivo quando usamos uma ameaça para que a criança realize determinada atividade ou comportamento? Se a ideia for apenas “convencer” a criança, esta é uma estratégia que pode ser bem sucedida em um dado momento, mas não garante sua eficácia em outras situações. Geralmente quando o adulto recorre à ameaça, ele pressupõe que diante dela a criança recuará em seu desejo, acatando o que lhe é solicitado; ou seja, trata-se de uma medida que visa prevenir um comportamento não desejado. Porém, quando a ameaça não é suficiente, será que o adulto dá conta de levá-la a cabo, pondo-a em prática?  Neste caso, a estratégia deixa de ser a ameaça e passa a ser o castigo como punição por aquilo que não foi feito conforme o solicitado, a posteriori da ação da criança.

Temos que os principais tipos de castigo “disponíveis no mercado” são: físicos (através de palmadas, puxões de orelha, beliscões, entre outros), punitivos (a criança fica sem algo que ela tenha em alta estima, como um brinquedo ou uma atividade) e moral (como ir para o quarto pensar).

No primeiro caso, do castigo físico, é interessante observar que geralmente, quando um adulto bate numa criança, é porque ela o deixou muito bravo. Todavia, ao usar a força física para demonstrar sua braveza, o adulto está indiretamente dizendo para a criança que essa é uma forma aceitável de lidar com alguém que nos embravece. Será que é?

No castigo punitivo, o que parece estar em cena é que a criança, por não querer ficar sem algo que lhe é valioso, atenda ao que lhe foi solicitado, isto é, continuamos no campo da ameaça, sem necessariamente facilitar a construção de uma auto-percepção que inclua a noção de causa e efeito. Por fim, no castigo moral, estilo “vá pensar sobre o que você fez”, dependendo da idade, a criança ainda não tem recursos para fazer essa reflexão sozinha. Nesta circunstância, o adulto perde a oportunidade de servir como mediador para essa reflexão ajudando-a a compreender o que ela perde com determinado comportamento.

Desse modo, vemos que assim como na ameaça, todas essas “categorias de correção” de determinado comportamento da criança também não parecem favorecer o desenvolvimento de recursos que a ajudem no desenvolvimento de sua auto-percepção. Diante desta constatação, é interessante que o adulto possa substituir a ideia de ameaça/castigo por uma reflexão conjunta, de forma a colocar a criança numa posição ativa diante do impasse, apontando a causa e sua consequência: se ela não quer tomar banho, ficará suja e mal cheirosa, resultando que talvez ninguém queira se aproximar dela para brincar. Se ela não quer dormir, ficará cansada e aproveitará muito pouco a escola no dia seguinte (ou qualquer outra atividade valiosa para a criança) e assim por diante.

Vale ressaltar que para que esses apontamentos sejam acolhidos pela criança é importante verificar, consultando a criança, se de fato eles fazem sentido para ela ou partem de um desejo do adulto, como quando o adulto insiste para que a criança coma quando na realidade ela já está satisfeita, ou quando é o adulto quem não tolera ver a criança suja. Por isso, ao nomear a causa e a consequência da necessidade do banho, por exemplo, é interessante investigar junto à criança se ela compreende de que maneira essa relação, de causa e efeito, afeta sua vida. Como seria não ter nenhum amigo para brincar? Isso já lhe aconteceu alguma vez? Como ela se sentiu? São perguntas que ilustram essa proposta.

Outro aspecto que merece destaque nesta temática, relaciona-se a situações mais “trágicas”, como quando a criança joga algum objeto em alguém, machucando a pessoa de maneira a provocar alguma marca (um corte, um roxo), ou se ela morde um amigo deixando a marca do dentinho e provocando um belo choro no “atacado”, a consequência de sua atitude se apresenta de forma escancarada. Nessas ocasiões muitas vezes a própria reação da pessoa afetada pelo comportamento da criança já é suficiente para que ela tenha dimensão de seu comportamento. Basta que os adultos envolvidos possam lhe nomear o que aconteceu e ao mesmo tempo incluí-la nos cuidados, como pedir que ela faça um curativo ou que ajude a limpar o machucado.

Assim, quando vemos a ameaça e o castigo a partir destas perspectivas, ambos perdem sua função punitiva, abrindo espaço para alternativas que convidem adultos e crianças a pensarem sobre qual a melhor maneira de lidar com os impasses que venham a surgir entre eles, visando então uma implicação de todas as partes envolvidas, na resolução da situação da qual se queixam.

Para aqueles que dirão que quando eram pequenos levaram palmadas e sofreram castigos ilógicos como os discutidos no texto e nem por isso são traumatizados ou não se desenvolveram, uma reflexão: castigos podem até não provocar entraves para o desenvolvimento infantil, mas também não o favorece!

 

Imagem: Google. Texto escrito por Silvia Bicudo.

A Silvia é psicóloga (PUC-SP), psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae) e acompanhante terapêutica em inclusão escolar. Com formação em Psicologia Perinatal e Parental (Instituto Gerar), fez parte da equipe da Ninguém Cresce Sozinho entre 2016 e 2018

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As telas eletrônicas e a educação de seu filho

O hábito de passar muitas horas diante de uma tela de aparelho eletrônico tem sido associado a uma série de problemas que afetam a saúde física e mental das crianças: sedentarismo, ansiedade, agitação excessiva, dificuldades de concentração, fraca interação social, alienação do mundo real. Porém, a despeito das exortações dos especialistas para que os pais resistam à tentação de entregar celulares e tablets nas mãos de crianças pequenas, é cada vez mais comum ver um bebê olhando para a tela de um celular.

Por CRISTIANE LASMAR

É verdade que, diante da pequena tela, o bebê fica quietinho, fascinado, parece feliz… Mas podemos dizer o mesmo de um adolescente que passa o dia todo jogando videogame, não é mesmo? Experimente abrir a porta do quarto e perguntar a ele se quer parar de jogar para passear, estudar, ou fazer qualquer outra coisa. Capaz de nem escutar. Sabemos, porém, que esse não é um hábito saudável. Da mesma forma, a expressão de fascínio de um bebê diante de uma tela não indica que você está lhe dando algo realmente salutar e benéfico ao seu desenvolvimento. Indica somente que o que se passa na tela (ou a própria tela em si) está conseguindo atrair e reter a sua atenção, mais do que as outras coisas que acontecem ao seu redor. Muitas vezes, o tempo que o bebê passa olhando para o celular acaba sendo oportuno para uma mãe cansada ou atarefada. Mas é preciso muito cuidado: esses momentos de descanso ou de liberdade podem ter um preço alto demais.

Até completar três anos de idade, o bom desenvolvimento da criança depende fundamentalmente de ela estar imersa em sua realidade. Todos os dias de sua vida são repletos de experiências inéditas: ela aprende novas palavras, descobre novos objetos, avança ligeiramente na habilidade de realizar um novo movimento. A criança só necessita de oportunidades para se maravilhar com objetos e experiências reais: estímulo para os cinco sentidos, música de qualidade, contato com a natureza, oportunidade de ouvir a sua língua materna sendo bem falada, seja por meio de leitura em voz alta, seja por meio de conversas com os pais. O adulto deve administrar essas experiências, auxiliando a criança no desenvolvimento das habilidades de observação e atenção. “Olhe esta flor amarela, que linda. Espere, vamos olhar mais um pouco. Sinta como o perfume é bom e a pétala é macia.” Mesmo que ela não entenda todas as palavras, muita coisa será assimilada, não tenha dúvida.

Ora, o acesso cotidiano às telas eletrônicas pode ir na contramão dessas necessidades, de várias maneiras. Em primeiro lugar, porque em nada favorece o contato da criança com o mundo real, muito pelo contrário. Em segundo lugar, porque ele pode afetar os padrões de observação e concentração da criança, uma vez que não lhe exige o esforço de focalizar o objeto de seu interesse em meio a outros objetos, sons, e coisas que acontecem em torno, nem tampouco permite que ela observe o mundo no seu próprio ritmo. A tela já lhe fornece um enquadramento prévio e um ritmo pré-determinado. Por fim, dependendo do temperamento da criança, a concorrência das telas pode tornar a realidade do mundo menos atraente para ela. Para muitas crianças, as telas passam a ser o único objeto de curiosidade.

É preciso levar em conta também que, uma vez acostumado com os aparelhos eletrônicos, seu bebê um dia vai ser capaz de solicitá-los com veemência e insistência. Esse momento pode vir tão logo ele esteja apto a apontar ou pronunciar algumas palavras. A cada solicitação, você terá que avaliar a situação e decidir se deve ceder ou negar. E, a menos que a sua criança seja extremamente cordata e obediente por natureza, isso pode dar ocasião a conflitos. Então, por que começar tão cedo? Por que entregar à criança algo que, além de não ser necessário nem adequado, você vai ter que eventualmente lhe negar? Quando ela for mais crescidinha, você certamente não vai ficar satisfeito se perceber que seu tempo está sendo gasto mais diante das telas do que com outras coisas que você considere importantes. Então, me diga, por que criar esse hábito quando ela ainda não tem nem consciência de que as telas existem, nem capacidade para pedir?

A partir dos quatro, cinco anos de idade, a não ser que a família construa um estilo de vida radicalmente diferente do padrão hegemônico, as telas dificilmente poderão deixar de fazer parte da vida da criança. Elas estão em toda parte, inclusive em nossas casas, e – o que é ainda mais relevante – em nossas mãos. Mesmo que os pais tomem a decisão de jamais disponibilizá-las diretamente à criança, ela eventualmente terá acesso aos aparelhos eletrônicos em ocasiões sociais, como festas de aniversário, visitas à casa de coleguinhas ou parentes, etc. Mas isso não é, necessariamente, motivo de preocupação. Os aparelhos eletrônicos podem, sim, fazer parte da vida das crianças maiores, como elementos de entretenimento, desde que haja uma supervisão competente e incansável por parte dos adultos. O importante é que você tenha consciência da necessidade de estabelecer uma medida e implementá-la por meio de regras firmes e claras. Agora, se o seu filho já está dependente das telas a ponto de não se interessar por outras atividades, você tem um problema e precisa enfrentá-lo o quanto antes.

Durante um período de alguns meses, você precisará empreender um firme trabalho de desconstrução do hábito. Procure manter a criança, o máximo de tempo possível, em atividades fora de casa, em lugares onde ela não terá acesso aos aparelhos eletrônicos. Comece devagar, aumentando gradativamente as horas de abstinência. Se ela costuma correr para o computador, o tablet ou celular assim que entra em casa, chegue um pouco mais tarde, passe em algum lugar para fazer um lanche, mude ligeiramente a rotina. Ao mesmo tempo, converse com a criança sobre a necessidade de diminuir o tempo diante das telas. Diga a verdade. Explique que os aparelhos eletrônicos só serão aceitáveis se não ocuparem tempo demais em sua vida. Em casa, ofereça alternativas. Proponha brincadeiras e jogos, assista a um filme junto com ela. Você precisará, em suma, fazer concorrência às telas, mas faça isso com inteligência e serenidade, sem medo e sem ansiedade.

Além de regular o tempo de acesso das crianças aos aparelhos eletrônicos, é muito importante, também, prestar atenção ao conteúdo que elas estão assimilando. O que está se passando na tela? Se o seu filho joga, quais são os jogos? Você os considera totalmente adequados? Se ele assiste a séries e animações, qual é a origem e o conteúdo que está sendo oferecido? Se ele assina canais de youtubers, como é o conteúdo apresentado e o linguajar utilizado? Quais são os interesses que esses influenciadores despertam em seu filho? Fugir dessas considerações significa protelar o enfrentamento de um problema real e incontornável. A tarefa de supervisionar, filtrar, regular e, se necessário, vetar o acesso de sua criança a conteúdos inadequados é inteiramente sua. Sem a sua firme ingerência, pessoas desconhecidas, e que em sua maioria veem as crianças apenas como consumidoras em potencial, estarão livres para fornecer cotidianamente, e de maneira privilegiada, o alimento da imaginação de seu filho.

Fonte: https://infanciabemcuidada.com                       

Imagem: Donald Zolan (1937 – 2009)

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As crises de oposição da criança: como lidar, o que fazer?

Toda vez que abro uma caixinha de perguntas no Instagram, aparece alguém com dúvida sobre como lidar com a birra da criança pequena. Quase que invariavelmente. Por esse motivo, resolvi esclarecer o meu pensamento acerca desse assunto com o nível de detalhamento que ele merece. Na verdade, no processo de escritura desse texto, eu me dei conta de que o que vou dizer aqui a respeito de como os pais devem se conduzir durante as crises de oposição poderia, de certa forma, ser estendido à questão mesma de como devem construir a sua relação de autoridade com os filhos.”

Por CRISTIANE LASMAR

Toda vez que abro uma caixinha de perguntas no Instagram, aparece alguém com dúvida sobre como lidar com a birra da criança pequena. Quase que invariavelmente. Por esse motivo, resolvi esclarecer o meu pensamento acerca desse assunto com o nível de detalhamento que ele merece. Na verdade, no processo de escritura desse texto, eu me dei conta de que o que vou dizer aqui a respeito de como os pais devem se conduzir durante as crises de oposição poderia, de certa forma, ser estendido à questão mesma de como devem construir a sua relação de autoridade com os filhos.

A partir dos dois e até os três ou quatro anos de idade, a birra é um comportamento normal e esperado. O que estamos chamando de birra, aqui, é um tipo de reação em que a criança chora, estende o corpo no chão, esperneia, e parece impermeável a qualquer tentativa de apaziguamento por parte dos adultos, levando os pais a um nível de desespero que muitas vezes faz com que eles próprios se descontrolem. Quando a birra ocorre em público, é muito comum que os pais se sintam impotentes e constrangidos. Não obstante o fato de o protagonista da cena ser a criatura que eles mais amam no mundo, naquele momento, eles se sentem tomados por emoções muito negativas: irritação, vergonha, raiva.

Assim como a birra é um comportamento esperado, também é normal que os pais experimentem esse tipo de reação ao se perceberem impotentes. Porém, se você tem uma criança de dois ou três anos em casa, eu tenho uma boa notícia: você não é de fato impotente, existe luz no fim do túnel. Para deixar de se sentir impotente, é preciso apenas que você entenda o que está acontecendo com o seu filho quando ele tem um ataque de birra, e adquira algumas ferramentas conceituais que vão lhe ajudar a se conduzir de maneira correta e eficiente durante essas crises. Vamos, então, nessa sequência.

A criança pequena ainda não teve tempo de desenvolver a capacidade de se controlar, que depende da maturação de algumas estruturas psicofísicas. Por isso, ela tende a reagir de forma disruptiva, e até mesmo agressiva, às frustrações do dia a dia. Mesmo em condições educacionais extremamente favoráveis, ela não estará pronta para o autocontrole. Além disso, encorajada por uma relativa autonomia motora e linguística, e tranquilizada pelo fato do mundo não ser mais um lugar tão novo e estranho, a criança começa a testar de maneira contundente a sua própria autonomia. Agora, em muitas ocasiões, ela faz questão de explorar o seu entorno (pretensamente) sem amparo ou ajuda. Nos limites da diminuta esfera de vida que ela já conhece por hábito, nasce o impulso de exercitar a sua vontade. E isso está na origem de muitas frustrações, seja porque a criança nem sempre consegue fazer sozinha o que planeja, seja porque muitas vezes os pais precisam colocar freio em suas pretensões.

Em resumo, a birra nada mais é do que um efeito da incapacidade da criança de lidar com a frustração que lhe assalta sempre que seus desejos se chocam com a estrutura da realidade, tanto com a realidade em seus aspectos mais “naturais”, como quando a torre de lego cai ou um brinquedo se quebra, quanto em seus aspectos mais “culturais”, como quando os adultos impõem ativamente limites e regras à criança.

O impulso de autonomia nem sempre resulta em ataques de birra, mas, para a maioria das crianças, costuma se traduzir em atitudes de ardente teimosia. Elas passam a querer escolher sozinhas suas próprias roupas, insistem em fazer coisas sem ajuda, recusam-se a colocar o cinto de segurança ou a serem conduzidas pela mão na rua. Em outros casos, o impulso de autonomia pode se limitar à vontade de tomar decisões sobre a rotina. “Não quero comer”, “não vou tomar banho”. O fato é que, em algum momento a partir dos dois anos de idade, a maioria das crianças começa a dizer “não” de um modo que, aos adultos, parece quase obsessivo. Com ou sem birra, é preciso ter serenidade para lidar com a criança nessa fase.

A primeira coisa é não valorizar demais esses comportamentos, e não se intimidar com eles. Sim, eles fazem parte do processo natural de desenvolvimento de seu filho. Porém, isso não significa que você deva fazer vista grossa, simplesmente dar tempo ao tempo. Ao contrário. O nosso papel é auxiliar a natureza, de maneira consciente e ativa. A maturação de certas estruturas psicofísicas é um fator necessário, mas não suficiente, para a conquista do auto-controle. E, além disso, ela só se completa no final da adolescência. Os adultos que cuidam da criança precisam, portanto, fazer a sua parte, ensinando-a a lidar com as suas próprias frustrações, a comportar-se de maneira mais equilibrada diante de uma vontade não satisfeita.

O impulso natural da criança é na direção da maturidade, mas não é verdade que existem hoje em dia o que mais vemos por aí são adultos imaturos? Um adulto normal já não se joga no chão quando é impedido de fazer algo que deseja. Porém, quantos adultos não conhecemos que são incapazes de lidar com a frustração? Quantos não reagem à estrutura da realidade fazendo sempre algum tipo de birra e infernizando a vida de quem está à sua volta?

Mas voltemos às crianças.

Algumas crianças fazem mais birra que outras e, inicialmente, podemos dizer que isso está ligado às disposições do temperamento. Por que eu digo “inicialmente”? Porque, independentemente do temperamento da criança, fatores como o ambiente doméstico, as circunstâncias cotidianas e o modo como os pais se conduzem, podem ajudar ou atrapalhar o desenvolvimento do autocontrole. Existem crianças que, por sua própria natureza, tentarão impor a sua vontade mesmo que isso tenha um custo para elas. Porém, até a criança cordata, naturalmente pouco disposta ao conflito e ao enfrentamento com os pais, pode se tornar birrenta se for afetivamente negligenciada, tratada com permissividade excessiva, ou exposta diariamente a circunstâncias estressantes.

O que seriam, mais precisamente, circunstâncias estressantes? Assim como acontece com os adultos, a fome, o sono e a agitação excessiva são estados que costumam produzir irritabilidade. Por isso, a primeira providência educacional dos pais deve ser a de estabelecer uma rotina de alimentação, sono, higiene e lazer que restrinja as possibilidades de que a criança adentre esses estados fisiológicos de irritação que funcionam como gatilhos quase imediatos para a birra.

Mas o que fazer quando, mesmo controladas essas condições, a criança se joga no chão, chora de forma estridente, e se recusa a aceitar que as coisas não se passem exatamente como ela quer? Diante de uma criança fazendo birra, devemos sempre ter em mente que o nosso papel é ajudá-la a desenvolver a capacidade de se acalmar e se controlar. Devemos administrar os ataques de birra como situações de aprendizagem para a criança. Nossa tarefa é ajudar a criança a compreender e organizar as suas próprias emoções, e mostrar a ela que é possível recuperar o equilíbrio perdido diante de uma frustração inevitável.

Na hora da crise, fique junto de seu filho, conectado, não o abandone. Abrace-o para acalmá-lo ou simplesmente mantenha algum contato físico para que ele sinta a sua presença e a sua atenção. Deixe claro que você compreende o seu sentimento, embora não aprove o seu comportamento. Quando perceber que ele está um pouco mais calmo, e isso pode levar tempo, aí, sim, converse com ele e explique o que está se passando. Em uma linguagem acessível, diga que você entende que ele está frustrado mas que, na vida, as coisas nem sempre são como nós queremos. A estratégia pode ser resumida em conectar-se com a criança mantendo a sua perspectiva de adulto. Em outras palavras, você mostra que entende a sua chateação mas não sai correndo para dar o que ela quer.

Vamos imaginar a situação. A boneca se quebrou e a criança começa a ter um ataque. O que você faz? Corre desesperadamente para buscar a cola? Não. Quando agimos assim, a mensagem que estamos transmitindo à criança é a de que o problema ocorrido justifica o mau comportamento dela. A nossa missão é ajudá-la a sair do estado de descontrole para, em seguida, pensar em uma solução. Outra situação: a criança se joga no chão do shopping porque você não quer comprar um brinquedo. A solução é comprar o brinquedo? Claro que não. Até quando você vai suportar ficar refém dos desejos de seu filho toda vez que entra em uma loja? Você quer que ele aprenda que pode ter tudo o que quer? A equação é simples: se você correr para buscar a cola ou para comprar o brinquedo, o seu filho não vai aprender nada, não vai avançar na conquista do autocontrole, porque você estará atrapalhando o trabalho da natureza.

Diante de um ataque de birra nada é mais importante do que manter a calma e a serenidade, acolher a frustração da criança sem se deixar contaminar afetivamente. Não grite com ela, não a abandone. Mas não deixe que ela faça o que quer. Não recue! A não ser que a sua ordem ou limite tenha sido completamente sem sentido. Nesse caso, aí sim, é melhor dar um passo para trás. É melhor ceder do que ser injusto. A justiça é uma virtude, e os pais não devem jamais agir de maneira injusta. Por isso, antes de dar uma ordem ou colocar um limite, reflita. Escolha as batalhas que você considera realmente importantes. Não aja impulsivamente. Se queremos que nossos filhos desenvolvam a capacidade de autocontrole, temos que começar cuidando da nossa.

Fonte:https://infanciabemcuidada.com/

Imagem: “In Disgrace”, Charles Burton Barber (1845-1894) (detalhe).

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A educação da afetividade nos primeiros seis anos de vida

O conceito de educação que baseia todo o meu trabalho, no blog e nas redes sociais, tem como referência iluminadora a tradição clássica, não em seus métodos, mas em sua motivação principal, que é a de colocar a criança ou o jovem no caminho da autoconsciência e da excelência moral. Nesse sentido, minha perspectiva se distancia tanto de uma visão pragmática de educação, centrada na ideia de utilidade, quanto de uma visão libertária, centrada na ideia de auto-satisfação individual. Ambas são, a meu ver, demasiadamente medíocres em seus objetivos. Penso que nós, humanos, devemos almejar mais do que isso.

Por CRISTIANE LASMAR

É, portanto, tendo em vista a busca da excelência moral que se deve entender a minha formulação, já tantas vezes reiterada, de que “educar uma criança não consiste em dominar a sua natureza, e sim em conduzi-la, sempre e incansavelmente, para a frente e para o alto, ou seja, para o melhor de si mesma”.

Mas como colocar em ação esse projeto de educação nos primeiros anos de vida? O que significa exatamente educar para a excelência moral em período de tamanha imaturidade? Em primeiro lugar, é preciso compreender que a excelência moral não é um ponto de chegada, que possamos descrever ou caracterizar previamente, e de maneira concreta. Ela deve ser, antes, um norte, uma direção, que imprimimos à educação da criança sem deixar de levar em conta a sua própria individualidade. No sentido educacional, a excelência moral será específica para cada pessoa. E, para ajudarmos a criança a encontrar o seu caminho, devemos começar pela base, pelo plano dos afetos.

Na fase de extrema dependência que se estende do nascimento aos seis anos de idade, a preocupação fundamental de quem educa deve ser com a organização da afetividade da criança. Nesse período, todos os outros objetivos educacionais – aprendizagens sociais, formação de hábitos, construção do imaginário, desenvolvimentos cognitivo e motor – devem estar subsumidos no objetivo de ajudar a criança a construir um caminho interno que a leve gradativamente a conhecer os seus afetos e a manejá-los de forma relativamente segura. Isso tudo, é claro, com muita paciência, dentro dos limites impostos por sua imaturidade.

A organização afetiva é parte integrante do processo de amadurecimento e, sendo assim, não podemos ajudar a criança a se organizar afetivamente pressupondo uma maturidade que ela ainda não possui. A natureza faz a sua parte, predispondo a criança à maturação, mas cabe aos educadores colaborarem ativamente com o processo de organização dos afetos, de modo que ele se integre ao desenvolvimento da linguagem, da memória, do imaginário e da volição. Em outras palavras, de modo que ele se integre a um quadro cultural e existencial mais amplo.

A criança pequena é governada pelos afetos, e os afetos costumam se expressar por meio de suas emoções correlatas. Entendo por “afetos”, aqui, as disposições internas que determinam o modo como a criança será afetada pelas informações e estímulos que colhe do mundo. Essas disposições têm base em sua própria constituição individual e nas experiências que ela já viveu. A “afetividade” seria o sistema, a configuração resultante do modo como os afetos estão organizados no psiquismo da criança. E as “emoções” seriam as expressões psicofísicas do fato de ela estar sendo afetada por algo. Quero esclarecer que apresento essas definições de maneira bem livre, e faço uso delas do modo que me parece mais útil para o nosso propósito, que é o de compreender como podemos ajudar no processo de organização da afetividade infantil.

Então, voltando ao nosso ponto: nessa definição, os afetos são tudo o que a criança pequena possui para receber e absorver as impressões que lhe chegam do mundo, impressões as quais ela expressa por meio das emoções. Para conhecer a vida afetiva da criança, é fundamental, assim, que prestemos atenção à sua vida emocional. As emoções são os elementos observáveis, materializáveis, a partir dos quais poderemos de fato atuar. E, inicialmente, para ajudar a criança em seu processo de organização afetiva, é preciso partir da análise da observação das emoções mais básicas. Do que ela gosta, e do que não gosta? O que a faz ficar triste ou alegre? Do que tem medo? O que desperta a sua raiva? Ajudar a criança a transitar no território dessas emoções é dar os primeiros passos na direção do autoconhecimento, da compreensão de si mesma.

Resumindo, podemos dizer que auxiliar a criança em seu processo de organização afetiva consiste, inicialmente, em ajudá-la a conhecer as suas emoções, a nomeá-las, a identificar as suas causas, a sua origem, e a conectar esse conhecimento à sua capacidade de decisão. No decorrer das interações cotidianas, devemos mostrar à criança, suave e naturalmente, que existe a possibilidade de exercer um domínio relativo sobre as suas emoções, ou, pelo menos, de manejá-las de maneira consciente e equilibrada, frente aos limites inevitáveis apresentados pela vida. Tais limites podem ser postos tanto pela própria estrutura da realidade, quanto pela ação dos pais no exercício de sua autoridade. Em ambos os casos, a criança deve aprender a aceitar esses limites e a manejar conscientemente as emoções decorrentes dessa aceitação.

A partir dos dois anos, é importante também que a criança comece a ser apresentada a noções básicas de moralidade, a diferenciar o que é certo do que é errado, o que é justo do que é injusto, o que é adequado do que não é. Essa é a fase de começar a ouvir histórias que distinguem o Bem e o Mal de maneira inequívoca, por meio de personagens claramente definidos desse ponto de vista. O seu discernimento psicológico ainda é demasiadamente primitivo para que ela seja capaz de entender as complexidades da alma humana sem prejuízo do seu desenvolvimento moral.

Por fim, a criança, nessa idade, também deve ser estimulada a exercitar a capacidade de se colocar no lugar dos outros, a entender que não deve fazer com ninguém aquilo que não gostaria que fizessem com ela própria, ou seja, a desenvolver aquela atitude moral que costumamos chamar de “empatia”. Isso tudo será fundamental para que ela se torne capaz de lidar com as suas próprias frustrações e desenvolver o senso de dever.

Para que todo esse trabalho de organização da afetividade possa se realizar de maneira consistente e tranquila, é preciso contar com uma condição básica. A criança precisa se sentir segura de que é amada e protegida. Em dois artigos aqui no blog, mostrei que o amor dos adultos é a base sobre a qual ela se apoiará para dar os primeiros passos na direção de todas as aprendizagens que a vida vai lhe impor, começando pela organização da vida afetiva. (Leia A Importância do Apego e O Apego na Primeira Infância)

Tudo o que estou sugerindo pode parecer grave demais para uma criança de três, quatro anos. Mas não se trata de passar o dia inteiro chamando a atenção da criança para suas emoções, fazendo-a hiper consciente de si mesma o tempo todo. Trata-se, simplesmente, de não deixar passar as ocasiões que a interação cotidiana oferece para ensiná-la a se conhecer e a encontrar os seus pontos de equilíbrio. Também não estou dizendo, notem bem, que os pais têm o poder de organizar os afetos dos filhos. O processo de organização afetiva é algo que pertence à criança e que ela precisará administrar ao longo de toda a sua vida. A nossa responsabilidade, repito, é apenas a de auxiliá-la, ajudando-a a enquadrar a sua afetividade num ambiente moral mais amplo.

A partir dos sete anos, aproximadamente, uma criança afetivamente bem cuidada e bem provida já estará em condições de dar alguns passos mais largos. Nesse momento, com a afetividade já organizada ainda que em um nível primário, o foco da educação dos afetos deve mudar um pouco. Não será uma mudança radical, apenas um deslocamento de ênfase. Uma vez que a criança já adquiriu as noções básicas de certo e errado, compreendeu que as coisas nem sempre podem ser do modo como ela deseja, e já percebeu que pode ter alguma ingerência sobre as suas próprias emoções, o processo de educação moral deve então ser infletido na direção da capacidade de agir no mundo. O ambiente da família, que é vivenciado pela criança como uma extensão afetiva de si mesma, continuará sendo por muito tempo o seu porto e o seu refúgio, mas agora ela precisa ir ampliando os seus horizontes de maneira gradativa e segura.

Nessa nova fase, a criança deve então ser encorajada a desenvolver capacidades de ação, força e resistência para transitar em círculos sociais mais amplos, menos protegidos de maneira imediata pelos pais. Na escola de ensino fundamental, por exemplo, ela será confrontada com novas exigências, bem mais próximas das exigências da vida futura, e precisará desenvolver a sua força de vontade, a sua resiliência. É no contato com o mundo que será permanentemente animada e testada a sua fortaleza. E se o trabalho de organização da afetividade tiver sido bem conduzido nos primeiros anos, ela já terá meio caminho andado nesse sentido. A capacidade de lidar com as frustrações, de adiar o prazer, e de prever e manejar as suas próprias reações diante das intempéries do cotidiano social, representa uma mão na roda quando a criança começa a se deparar com a necessidade de se esforçar para superar obstáculos e fazer as suas primeiras conquistas realmente pessoais.

Para finalizar, tentando fechar o raciocínio, volto então à questão da excelência moral, com a qual iniciei esse artigo. Nós, pais, costumamos nos perder com muita facilidade ao longo da trajetória de condução de nossas crianças. São muitas as hesitações com as quais nos deparamos no meio do caminho, e que nos levam a duvidar de nossas próprias escolhas educacionais. O meu conselho é o seguinte. Mantenha o foco na formação da pessoa de seu filho. O que ele vai realizar, o que ele vai conquistar, depende fundamentalmente do modo como vai exercer a sua própria liberdade no momento oportuno. Não cabe a você decidir. Por isso, tenha sempre em mente que o que realmente importa é a sua qualidade moral, a sua força pessoal. De nada serve uma inteligência brilhante, uma cultura grandiosa, uma instrução impecável, sem autoconsciência e auto domínio. E isso porque o desenvolvimento moral não se refere somente ao discernimento entre o Bem e o Mal. Ele se refere, sobretudo, à nossa capacidade de colocar uma certa noção de Bem acima de nossos desejos e interesses individuais. Essa capacidade é o único sinal inequívoco de uma educação elevada.

Fonte: https://infanciabemcuidada.com/

Imagem: Donald Zolan (1937-2009)

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Devotamento materno: por que e como não perder o foco?

A maternidade costuma chegar para a mulher contemporânea como um acontecimento festivo, uma conquista pessoal. Porém, ela logo se depara com a sua própria falta de disponibilidade interna para exercer o papel de mãe com devotamento e entrega. Em muitos momentos, a despeito de todo o amor que sente pelo pequeno ser que colocou no mundo, o alto grau de dedicação que ele demanda parece estar além de suas forças físicas e psicológicas. Pelo menos, essa é a experiência concreta das mulheres do meio em que eu nasci, cresci e me tornei mãe.

Por CRISTIANE LASMAR

Por que será que nos sentimos existencialmente tão despreparadas para a maternidade? A resposta é simples. Porque nossa cultura individualista, materialista e hedonista não valoriza o devotamento materno. Ao contrário, ela desqualifica a mulher que coloca os filhos no centro de sua existência. Há sempre aquelas que, corajosamente, teimam. Mas como a cultura não lhes ofereceu modelos, elas precisam realizar um enorme e solitário esforço de reconfiguração existencial, além de mobilizar muita energia para nadar contra a corrente.

Não é a primeira vez na história que uma cultura desestimula as mulheres a assumirem de corpo e alma suas responsabilidades maternas. Outros exemplos poderiam ser citados. Mas meu objetivo aqui é falar de nós, e a verdade é que há algumas décadas as mulheres ocidentais urbanas vêm sendo bombardeadas, por todos os lados, com uma intensa propaganda contra a mãe devotada. Não vou nem tratar aqui da militância das correntes feministas que, seguindo o argumento equivocado de Simone de Beauvoir, veem a maternidade como uma forma de opressão. Estou me dirigindo às mulheres que valorizam sinceramente a maternidade, mas ainda assim hesitam, temendo se desconstruir diante do projeto maternal.

Crescemos ouvindo que ter filhos é algo desejável, desde que eles não sejam um obstáculo às nossas conquistas pessoais. Como se criar bem um filho não fosse, em si, uma grande conquista! Disseram-nos que os filhos, o trabalho, o lazer e a vida amorosa/sexual, são aspectos equivalentes e igualmente imprescindíveis de nossas vidas, que devem ser equacionados de modo que possamos satisfazer cada uma de nossas necessidades, sem perder nada. Crescemos como adultos mimados, incapazes de abrir mão de coisa alguma. E como, de todas as pessoas com as quais nos relacionamos, as crianças são as que possuem menos recursos para fazer valer sua perspectiva e expressar suas necessidades, acabamos terceirizando demasiadamente os seus cuidados para fazer frente às outras demandas.

Acontece que nossos filhos não são artigos de consumo, eles não vieram ao mundo apenas para satisfazer o nosso desejo de possuí-los. A maternidade não deve ser encarada como uma experiência narcísica. Ela é o projeto de produzir pessoas, e requer da mulher uma boa dose de maturidade. Como superar a dificuldade de abrir mão, consciente e voluntariamente, de certos prazeres e hábitos que nos distraem e nos levam a perder esse foco?

O primeiro passo é nos convencermos da relevância, ou melhor, da grandiosidade da tarefa materna. Como pode alguém achar, honestamente e em sã consciência, que dirigir empresas, bater meta de vendas, salvar baleias, ou qualquer outra atividade que uma mulher possa exercer fora de casa, compara-se em importância ao trabalho de cuidar bem dos pequenos seres humanos que colocou no mundo? Essa pergunta deve ser repetida para nós mesmas como se fosse um mantra, principalmente naqueles momentos em que sentimos falta dos aplausos dos outros.

Amamos nossos filhos mais do que tudo. E por eles seríamos capazes de dar a nossa vida. Mas nem sempre conseguimos abrir, em nossa rotina, o espaço prioritário que eles ocupam em nosso coração, e por isso vivemos em conflito. Ficamos enredadas em nossos próprios desejos individualistas, que se transformam e se amplificam na medida mesma em que são satisfeitos. Para escapar dessa armadilha, precisamos de uma profunda mudança de perspectiva, que começa por sermos capazes de discernir entre o que é prioritário e o que é secundário, de valorizar o essencial em lugar do acessório. Essa mudança pode ser libertadora, porque a energia de uma pessoa deve estar ali onde está o seu coração. Exercer a liberdade nada mais é do que fazer o que deve ser feito.

Ninguém faria tanta falta em nossas vidas quanto nossos filhos. E ninguém precisa mais de nós do que eles. Não seriam essas duas constatações já suficientes para nos convencer de que todas as outras coisas devem estar em segundo plano? Diferentemente dos demais projetos com os quais podemos eventualmente nos comprometer, o projeto materno não admite fugas ou escapes honrosos. E isso porque do outro lado da gangorra está um pequeno ser inocente e dependente que possui menos recursos do que nós para lidar com as frustrações. Por isso, o certo é equilibrar todas as outras coisas de modo que ele não seja prejudicado.

Mas que fique claro: o meu elogio ao devotamento materno não envolve emocionalismos ou idealizações. Não existe a mãe impecável, pois, como seres humanos que somos, nascemos inevitavelmente imperfeitas. Porém existe, sim, a mãe madura e responsável, que não se furta a assumir com zelo e determinação o seu papel. Quaisquer que sejam as circunstâncias concretas de sua vida, ela sempre acaba acertando no conjunto da obra. Porque se uma criança tem a atenção e o cuidado de sua mãe, tudo o mais virá como consequência.

Fonte: https://infanciabemcuidada.com/

Imagem: Lucia Coghetto, “Dolce Amore”

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Bagunça de criança: até onde devemos arrumá-la?

“Quando o ritual da arrumação é imposto e não construído com e pela criança, ela não compreenderá o sentido de manter a ordem de suas coisas.”
Por Patrícia L. Paione Grinfeld

É bastante comum encontrarmos nas mídias dicas de como organizar os brinquedos das crianças, especialmente próximo do final do ano e férias – creio que por razões óbvias, já que passagem de ano inspira uma nova ordem ou, ao menos, uma tentativa de, e a bagunça da criançada é inevitável quando ficam mais tempo em casa.

Embora tais dicas sejam válidas do ponto de vista da organização do espaço físico, nem sempre elas levam em conta que as formas de organização refletem o espaço psíquico de cada um, seja adulto ou criança. É por isso que muita gente não topa que alguém tente organizar sua “bagunça”, aquela onde todos se perdem, mas o dono sempre se acha.

Para as crianças, quanto mais acesso elas tiverem aos seus pertences e brinquedos, mais autonomia elas terão e mais livres elas estarão para explorar, brincar, criar e, consequentemente, serem elas mesmas.

Isso não significa que os ambientes onde uma criança habita devam ser um campo coberto por sapatos desamarrados, roupas, escovas de dentes, bolas, blocos, jogos, carrinhos, bonecos, galhinhos de árvore e afins. A harmonia em um lar também depende de que cada coisa esteja em seu lugar (inclusive pessoas!). Porém, se o ritual da arrumação for imposto e não construído com e pela criança, ela não compreenderá o sentido de manter a ordem de suas coisas. Como resultado, surgem brigas infindáveis durante ou nos momentos em que uma tarefa ou brincadeira cessa; ou ainda, e o que é pior, corre-se o risco da criança perder o foco da atividade em detrimento da arrumação.

Até os 6-7 anos, a criança não consegue conservar seus próprios objetos organizados como os adultos costumam deixá-los. Ela ajuda a arrumá-los e precisa ser ajudada na arrumação (o que é diferente de ter preguiça), já que sozinha não dá conta da tarefa.  A partir desta idade as crianças começam a ter sua própria organização, que pode ser diferente da organização “ensinada” ou esperada pelo adulto. Como essa ordem representa a maneira como a criança se expressa e se encontra diante de suas coisas, ela precisa ser respeitada, exceto quando compromete a integridade de alguém ou de um ambiente (nesses casos é necessário explicar por que não se pode manter tal organização).

Para a criança, o mais interessante é que seus objetos estejam sempre ao seu alcance, e que os brinquedos possam ficar espalhados em um canto da casa durante o período em que ela está livre para brincar. As crianças param e reiniciam uma brincadeira, descobrem outra no meio do caminho. Quanto mais chance tiverem para escolher, usar e brincar com seus brinquedos, mais vivas elas serão. Se há um adulto com ela e o caos está muito grande, só faz sentido arrumar a bagunça se a arrumação favorecer a brincadeira que está acontecendo. Um jogo de dominó espalhado no chão, por exemplo, pode se transformar na mobília de uma casa, e só precisa ser guardado se ele é deixado de escanteio ou pisado no vai e vem da criança. A bagunça ou desorganização pode estar presente apenas aos olhos de quem está fora da brincadeira, pois para a criança, pode não haver nada de mais no tal caos.

Já que não dá para exigir dos pequenos a mesma arrumação proposta pelos adultos, os espaços de convivência e habitados pela criança devem ser pensados para que a autonomia e a possibilidade de escolha sejam favorecidas. É isso que, mais tarde, a possibilitará ter uma organização favorável ao seu modo de viver.

 

Nota: Este texto, publicado pela primeira vez em 10/03/2014 no antigo blog Ninguém Cresce Sozinho, foi revisado e alterado minimamente em seu conteúdo original pela autora.

Artigo retirado do site https://ninguemcrescesozinho.com.br  Imagem: Google.