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A educação da afetividade nos primeiros seis anos de vida

O conceito de educação que baseia todo o meu trabalho, no blog e nas redes sociais, tem como referência iluminadora a tradição clássica, não em seus métodos, mas em sua motivação principal, que é a de colocar a criança ou o jovem no caminho da autoconsciência e da excelência moral. Nesse sentido, minha perspectiva se distancia tanto de uma visão pragmática de educação, centrada na ideia de utilidade, quanto de uma visão libertária, centrada na ideia de auto-satisfação individual. Ambas são, a meu ver, demasiadamente medíocres em seus objetivos. Penso que nós, humanos, devemos almejar mais do que isso.

Por CRISTIANE LASMAR

É, portanto, tendo em vista a busca da excelência moral que se deve entender a minha formulação, já tantas vezes reiterada, de que “educar uma criança não consiste em dominar a sua natureza, e sim em conduzi-la, sempre e incansavelmente, para a frente e para o alto, ou seja, para o melhor de si mesma”.

Mas como colocar em ação esse projeto de educação nos primeiros anos de vida? O que significa exatamente educar para a excelência moral em período de tamanha imaturidade? Em primeiro lugar, é preciso compreender que a excelência moral não é um ponto de chegada, que possamos descrever ou caracterizar previamente, e de maneira concreta. Ela deve ser, antes, um norte, uma direção, que imprimimos à educação da criança sem deixar de levar em conta a sua própria individualidade. No sentido educacional, a excelência moral será específica para cada pessoa. E, para ajudarmos a criança a encontrar o seu caminho, devemos começar pela base, pelo plano dos afetos.

Na fase de extrema dependência que se estende do nascimento aos seis anos de idade, a preocupação fundamental de quem educa deve ser com a organização da afetividade da criança. Nesse período, todos os outros objetivos educacionais – aprendizagens sociais, formação de hábitos, construção do imaginário, desenvolvimentos cognitivo e motor – devem estar subsumidos no objetivo de ajudar a criança a construir um caminho interno que a leve gradativamente a conhecer os seus afetos e a manejá-los de forma relativamente segura. Isso tudo, é claro, com muita paciência, dentro dos limites impostos por sua imaturidade.

A organização afetiva é parte integrante do processo de amadurecimento e, sendo assim, não podemos ajudar a criança a se organizar afetivamente pressupondo uma maturidade que ela ainda não possui. A natureza faz a sua parte, predispondo a criança à maturação, mas cabe aos educadores colaborarem ativamente com o processo de organização dos afetos, de modo que ele se integre ao desenvolvimento da linguagem, da memória, do imaginário e da volição. Em outras palavras, de modo que ele se integre a um quadro cultural e existencial mais amplo.

A criança pequena é governada pelos afetos, e os afetos costumam se expressar por meio de suas emoções correlatas. Entendo por “afetos”, aqui, as disposições internas que determinam o modo como a criança será afetada pelas informações e estímulos que colhe do mundo. Essas disposições têm base em sua própria constituição individual e nas experiências que ela já viveu. A “afetividade” seria o sistema, a configuração resultante do modo como os afetos estão organizados no psiquismo da criança. E as “emoções” seriam as expressões psicofísicas do fato de ela estar sendo afetada por algo. Quero esclarecer que apresento essas definições de maneira bem livre, e faço uso delas do modo que me parece mais útil para o nosso propósito, que é o de compreender como podemos ajudar no processo de organização da afetividade infantil.

Então, voltando ao nosso ponto: nessa definição, os afetos são tudo o que a criança pequena possui para receber e absorver as impressões que lhe chegam do mundo, impressões as quais ela expressa por meio das emoções. Para conhecer a vida afetiva da criança, é fundamental, assim, que prestemos atenção à sua vida emocional. As emoções são os elementos observáveis, materializáveis, a partir dos quais poderemos de fato atuar. E, inicialmente, para ajudar a criança em seu processo de organização afetiva, é preciso partir da análise da observação das emoções mais básicas. Do que ela gosta, e do que não gosta? O que a faz ficar triste ou alegre? Do que tem medo? O que desperta a sua raiva? Ajudar a criança a transitar no território dessas emoções é dar os primeiros passos na direção do autoconhecimento, da compreensão de si mesma.

Resumindo, podemos dizer que auxiliar a criança em seu processo de organização afetiva consiste, inicialmente, em ajudá-la a conhecer as suas emoções, a nomeá-las, a identificar as suas causas, a sua origem, e a conectar esse conhecimento à sua capacidade de decisão. No decorrer das interações cotidianas, devemos mostrar à criança, suave e naturalmente, que existe a possibilidade de exercer um domínio relativo sobre as suas emoções, ou, pelo menos, de manejá-las de maneira consciente e equilibrada, frente aos limites inevitáveis apresentados pela vida. Tais limites podem ser postos tanto pela própria estrutura da realidade, quanto pela ação dos pais no exercício de sua autoridade. Em ambos os casos, a criança deve aprender a aceitar esses limites e a manejar conscientemente as emoções decorrentes dessa aceitação.

A partir dos dois anos, é importante também que a criança comece a ser apresentada a noções básicas de moralidade, a diferenciar o que é certo do que é errado, o que é justo do que é injusto, o que é adequado do que não é. Essa é a fase de começar a ouvir histórias que distinguem o Bem e o Mal de maneira inequívoca, por meio de personagens claramente definidos desse ponto de vista. O seu discernimento psicológico ainda é demasiadamente primitivo para que ela seja capaz de entender as complexidades da alma humana sem prejuízo do seu desenvolvimento moral.

Por fim, a criança, nessa idade, também deve ser estimulada a exercitar a capacidade de se colocar no lugar dos outros, a entender que não deve fazer com ninguém aquilo que não gostaria que fizessem com ela própria, ou seja, a desenvolver aquela atitude moral que costumamos chamar de “empatia”. Isso tudo será fundamental para que ela se torne capaz de lidar com as suas próprias frustrações e desenvolver o senso de dever.

Para que todo esse trabalho de organização da afetividade possa se realizar de maneira consistente e tranquila, é preciso contar com uma condição básica. A criança precisa se sentir segura de que é amada e protegida. Em dois artigos aqui no blog, mostrei que o amor dos adultos é a base sobre a qual ela se apoiará para dar os primeiros passos na direção de todas as aprendizagens que a vida vai lhe impor, começando pela organização da vida afetiva. (Leia A Importância do Apego e O Apego na Primeira Infância)

Tudo o que estou sugerindo pode parecer grave demais para uma criança de três, quatro anos. Mas não se trata de passar o dia inteiro chamando a atenção da criança para suas emoções, fazendo-a hiper consciente de si mesma o tempo todo. Trata-se, simplesmente, de não deixar passar as ocasiões que a interação cotidiana oferece para ensiná-la a se conhecer e a encontrar os seus pontos de equilíbrio. Também não estou dizendo, notem bem, que os pais têm o poder de organizar os afetos dos filhos. O processo de organização afetiva é algo que pertence à criança e que ela precisará administrar ao longo de toda a sua vida. A nossa responsabilidade, repito, é apenas a de auxiliá-la, ajudando-a a enquadrar a sua afetividade num ambiente moral mais amplo.

A partir dos sete anos, aproximadamente, uma criança afetivamente bem cuidada e bem provida já estará em condições de dar alguns passos mais largos. Nesse momento, com a afetividade já organizada ainda que em um nível primário, o foco da educação dos afetos deve mudar um pouco. Não será uma mudança radical, apenas um deslocamento de ênfase. Uma vez que a criança já adquiriu as noções básicas de certo e errado, compreendeu que as coisas nem sempre podem ser do modo como ela deseja, e já percebeu que pode ter alguma ingerência sobre as suas próprias emoções, o processo de educação moral deve então ser infletido na direção da capacidade de agir no mundo. O ambiente da família, que é vivenciado pela criança como uma extensão afetiva de si mesma, continuará sendo por muito tempo o seu porto e o seu refúgio, mas agora ela precisa ir ampliando os seus horizontes de maneira gradativa e segura.

Nessa nova fase, a criança deve então ser encorajada a desenvolver capacidades de ação, força e resistência para transitar em círculos sociais mais amplos, menos protegidos de maneira imediata pelos pais. Na escola de ensino fundamental, por exemplo, ela será confrontada com novas exigências, bem mais próximas das exigências da vida futura, e precisará desenvolver a sua força de vontade, a sua resiliência. É no contato com o mundo que será permanentemente animada e testada a sua fortaleza. E se o trabalho de organização da afetividade tiver sido bem conduzido nos primeiros anos, ela já terá meio caminho andado nesse sentido. A capacidade de lidar com as frustrações, de adiar o prazer, e de prever e manejar as suas próprias reações diante das intempéries do cotidiano social, representa uma mão na roda quando a criança começa a se deparar com a necessidade de se esforçar para superar obstáculos e fazer as suas primeiras conquistas realmente pessoais.

Para finalizar, tentando fechar o raciocínio, volto então à questão da excelência moral, com a qual iniciei esse artigo. Nós, pais, costumamos nos perder com muita facilidade ao longo da trajetória de condução de nossas crianças. São muitas as hesitações com as quais nos deparamos no meio do caminho, e que nos levam a duvidar de nossas próprias escolhas educacionais. O meu conselho é o seguinte. Mantenha o foco na formação da pessoa de seu filho. O que ele vai realizar, o que ele vai conquistar, depende fundamentalmente do modo como vai exercer a sua própria liberdade no momento oportuno. Não cabe a você decidir. Por isso, tenha sempre em mente que o que realmente importa é a sua qualidade moral, a sua força pessoal. De nada serve uma inteligência brilhante, uma cultura grandiosa, uma instrução impecável, sem autoconsciência e auto domínio. E isso porque o desenvolvimento moral não se refere somente ao discernimento entre o Bem e o Mal. Ele se refere, sobretudo, à nossa capacidade de colocar uma certa noção de Bem acima de nossos desejos e interesses individuais. Essa capacidade é o único sinal inequívoco de uma educação elevada.

Fonte: https://infanciabemcuidada.com/

Imagem: Donald Zolan (1937-2009)

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